Shitake, a tradição japonesa em terras
estrangeiras e tempos modernos

Senhor Wilson

Falo para o senhor Wilson o motivo de querer conversar com ele: o projeto Histórias Reveladas, em comemoração aos sete anos da feira e que pretende contar um pouco da história dos seus expositores.

Eu o aguardo traduzir a minha informação. Sinto que é uma fala estrangeira, estranha, que atravessa um oceano inteiro que existe entre nós. Tal como o oceano que atravessaram os imigrantes japoneses…? Talvez. Espero.

O shitake, cogumelo comestível nativo do leste da Ásia, também fez essa travessia. Cultivado há aproximadamente oitocentos anos pelos orientais, foi trazido para o Brasil pelos japoneses há apenas três décadas. Destaca-se dos outros cogumelos devido ao seu alto teor de vitaminas e substâncias que fortalecem o sistema imunológico. Essas coisas, pesquisei na internet. Lembro-me delas para me distrair do tempo que passamos em silêncio.

Quando o Sr. Wilson identifica o projeto, um “ah” que esboça uma surpresa contida, talvez assombrada, chega de lá. Então, falo mais e revelo que quero saber um pouco da história dele. A resposta é a de que “ah, não tenho muito o que contar não, né!?”. Sorrimos. Estou mesmo é receosa de que a conversa seja difícil.
Existe ali uma cerimônia que desconheço e não sei calibrar na comunicação.

Logo, no entanto, percebo que apenas os tempos são diferentes, o ar é mais denso, o olhar é furtivo, e há o tal oceano, talvez fruto de uma introversão pessoal, talvez um coletivo que se coloca sempre a esses estrangeiros que vieram de tão longe. Ou a nós quando os encontramos e não sabemos que cerimônias respeitar!

A história? Ela vem. Só precisa ser conquistada, sai devagar, faz sua travessia. 120 dias é o tempo inicial que o Sr. Wilson tem que esperar apenas para que os blocos de composto inoculados com sementes de shitake fiquem prontos para produzir. São outras pessoas que produzem esses blocos, o substrato onde o shitake crescerá. “Não sei exatamente do que é feito. Tem serragem, farelos e umas substâncias, nutrientes, que eu não sei exatamente quais são”, ele diz.

Quem incentivou a cultivar shitake foi um amigo. Disse que era fácil. Mas não é. 120 dias tirando vagarosamente um plástico que envolve o composto inoculado com as sementes. Fico imaginando como é esse trabalho de paciência.

As sementes já estão se desenvolvendo, mas nada se vê. E o trabalho com elas acontece numa câmara fria, nesta etapa a cerca de 20º. O Sr. Wilson tem sete câmaras. As maiores, com 100m², são para esta etapa
inicial. Outras têm 75m² e servem para a fase da brotação.

O Sr. Wilson está na feira há sete anos, desde o começo. Quis vir para não ficar apenas em casa. Queria encontrar as pessoas. O pai, que tinha sido convidado pelo amigo a plantar shitake – sim, havia sido o pai – fazia as entregas para restaurantes e outros consumidores. O Sr. Wilson começou a vir para a feira.
Entro num canto, na lateral da barraca, para não atrapalhar a visão que as pessoas precisam ter dos produtos dele. Sinto-me um tanto invasora. Parece que estou adentrando uma terra estrangeira, que me é
estranha, da qual desconheço as leis. Uma intrusa? Pode ser, mas avalio que não há outra coisa a fazer ou vou atrapalhar as vendas.

O Sr. Wilson usa um pequeno espaço no balcão da barraca da D. Yola, uma sociedade improvável para mim e que não descobrirei como aconteceu. Ele está na feira porque queria deixar o sítio um pouco, deixar de ficar só nas câmaras frias. “Eu queria saber o que estava acontecendo no mundo, não é?”, ele me diz.
Acho curiosa sua estratégia de se conectar com o mundo de fora. Mas vai acontecendo, e ele estabelece lá na feira as suas relações. Discretas? Talvez, para o meu olhar.

Depois de 120 dias, as sementes começam a brotar. Para isso, precisam ir para uma câmara ainda mais fria, aquelas menores, a 16º. Depois dessa transposição, mais quinze dias e então haverá cogumelos para colher. Não nascem todos de uma vez. Feito o primeiro corte, os blocos de composto são hidratados e produzem de novo. Isso pode se repetir até sete ou oito vezes. No entanto, às vezes, uma leva inteira não produz. Trabalho e dinheiro perdidos.

“Dá pra negociar com quem vendeu, dizer que não produziu?”, pergunto.

“Às vezes dá, às vezes não dá.” Só. Não tenho detalhes sobre quando é possível ou não reclamar dos substratos estéreis ou com problemas. Olho o horizonte. Os olhares se perdem por um tempo. Silêncio. Pergunto-me como vamos seguir com essa viagem.

Tudo isso ainda é bem melhor do que com as flores, o Sr. Wilson lembra. Antes dos cogumelos, eram flores, “de corte, né?”.

“Ah!” – alívio com a continuidade da conversa – “Quem fazia? O senhor? A família?”

“É… Meu pai, né? Era do meu pai.” Descubro que quando o Sr. Wilson nasceu o pai já plantava flores.

Quando o jovem de Nagoya, o pai do Sr. Wilson, chegou ao Brasil, com todos os sonhos de um jovem imigrante de ter uma vida melhor, ele foi mesmo é para uma lavoura de batatas. Era no estado de São Paulo – “não lembro onde. Só sei que eu nasci em Barueri”. A casa que tinham prometido era, na verdade, uma barraca, uma casa de lona. Então, ele, o pai, ficou querendo sair logo daquilo, para melhorar mesmo de vida, o sonho que o movera oceano afora. Mas isso levou vários anos.

Não foi fácil. Quando enfim conseguiu deixar a lavoura, foi para as flores. E mandou vir a moça que tinha prometida em casamento no Japão. Não, espera, isso foi ainda na lavoura – o mar da conversa às vezes é misterioso e entendo mal as coisas, preciso refazer o caminho, acertar a direção. O fato é que o filho mais
velho, Wilson, nasceu quando trabalho já era com as flores. Porém, ele nunca quis aquilo para a vida dele. Tampouco os irmãos mais novos, um homem e uma mulher, quiseram.

O irmão caçula era uma capacidade para administrar os negócios, uma cabeça muito boa! Tudo caminhava muito bem quando ele administrava o negócio com as flores. Era excelente. Mas depois ele se casou com uma dentista e hoje administra as coisas do consultório. A irmã fez faculdade – “alguma coisa ligada a
computadores, não sei bem” – e foi para o Japão estudar computação. Casou lá, se separou, mas continua no Japão. Tem um bom emprego no consulado brasileiro.

“E o senhor? Também não quis as flores? Por quê? Tentou outra coisa no lugar disso?”

“As flores dão muito trabalho, é uma vida difícil. Tudo em estufa, mas às vezes dá errado e perdemos tudo. Sou engenheiro.” Engenheiro!? Estou no meio do oceano, surpresa, apertando a vista na tentativa de identificar o que está no horizonte e às vezes sou surpreendida com um movimento na água bem perto de mim.

Sr. Wilson segue navegando… A conversa flui agora. Boas correntezas.

Com o diploma fresquinho ele foi para o Japão também, quando a irmã já estava lá. Queria fazer estágio em engenharia. Os amigos desaconselharam. A irmã desaconselhou. Dificilmente ele conseguiria ganhar dinheiro, experiência e oportunidades com isso. Acabou mesmo trabalhando como operário. A irmã ajudou a procurar um bom lugar. Entre pessoas conhecidas, conseguiu não ser uma mão-de-obra explorada. Até ganhou algum dinheiro. O pai, infelizmente, precisou pedir um tanto emprestado para pagar o trator que havia comprado de um amigo – “só na palavra, não podia ficar a vida toda devendo pra ele”. Depois o Sr.
Wilson voltou pro Brasil.

Retornou pro Japão mais uma vez anos depois. E por fim veio de vez para o Brasil. O dinheiro que juntou se foi nesse movimento todo. Entre essas idas e vindas, também aconteceu o casamento. Ah, então há uma
esposa!

“E ela trabalha junto? Costuma vir para a feira?”

“Vem nada.”  Já veio. Uma única vez. Mas ele ficou pra lá e pra cá conversando – ah, que danado, um conversador! – que ela não aceitou mais vir pra ficar trabalhando sozinha na barraca. Agora que o negócio com o shitake é mais dos dois mesmo – o pai do Sr. Wilson praticamente se aposentou da empreitada –, ela está mais envolvida em tudo: faz contas, coordena compras e vendas, embala, se não me engano, colhe também.

Nesse ponto da conversa, uma moça compra shitake. Acaba levando shimeji branco e escuro também. Os shimejis não são produção do Sr. Wilson. São de amigos. As pessoas na feira procuram, então ele traz de amigos que moram perto. Um casal bonito leva mais uma bandeja, a do shitake mais graúdo, mais caro. Uma mulher com o filhinho separa cogumelos de vários tipos. Todos se vão. Reservo o meu pacote, pago, ele guarda numa sacolinha na geladeira porque ainda vou andar pela feira. Procuramos um ponto no oceano por onde continuar.

Já estamos no fim da viagem. Não é à toa que ele conta do final do processo com os shitakes: depois de todas as colheitas possíveis, as câmaras são limpas, os substratos onde os cogumelos cresceram precisam ser descartados. Viram adubo.

Como tudo é orgânico, este é um adubo mais que especial. Pergunto se usa numa horta. Não. Acaba dando para os amigos. Entendo que ele não cultiva uma horta. Tem sete câmeras frigoríficas de cultivo de shitake. Não tem uma horta. Penso que temos uma visão romântica do que é plantar. Eu poderia perguntar admirada: o senhor não tem uma horta? Não. Ele já me explicou que tem sete câmeras de shitake, que nunca quis as flores, que se formou em engenharia, que quer vir à feira para saber o que está acontecendo no mundo, pra não ficar fechado no sítio… Então, não, pelo visto não tem e não quer ter uma horta.

Que outros anseios deve ter? Por ora satisfaz, por meio da sua produção de shitake, aquilo que é o básico, sua sustentação, mas também o desejo de sair de sua terra – o sítio, as câmaras, o Japão na tradição herdada de cultivar cogumelos – e ir para essa terra estrangeira que é a feira. Ele quer olhar o mundo, este
mundo de cá. Quer encontrar pessoas diferentes, saber o que está acontecendo no mundo aqui fora. Quer saber o que acontece no mundo delas? Saber como elas vivem? Talvez. Talvez ele não saiba muito bem o que o move. Nem nós. Ele parece respeitar isso. Não quer me contar tudo, explicar tintim por tintim. Quem sabe isso não tem raízes lá no Japão, na sabedoria oriental que lida com dimensões maiores da existência?

A existência e o oceano são mesmo infinitos e misteriosos. E têm suas correntes, profundidades e propósitos, que muitas vezes desconhecemos. É a vida. Dela, uma parte de mistério fica nesta conversa. Mas acredito que um outro tanto possa ter se revelado.

Shitake, a tradição japonesa em terras
estrangeiras e tempos modernos

Senhor Wilson

Falo para o senhor Wilson o motivo de querer conversar com ele: o projeto Histórias Reveladas, em comemoração aos sete anos da feira e que pretende contar um pouco da história dos seus expositores.

Eu o aguardo traduzir a minha informação. Sinto que é uma fala estrangeira, estranha, que atravessa um oceano inteiro que existe entre nós. Tal como o oceano que atravessaram os imigrantes japoneses…? Talvez. Espero.

O shitake, cogumelo comestível nativo do leste da Ásia, também fez essa travessia. Cultivado há aproximadamente oitocentos anos pelos orientais, foi trazido para o Brasil pelos japoneses há apenas três décadas. Destaca-se dos outros cogumelos devido ao seu alto teor de vitaminas e substâncias que fortalecem o sistema imunológico. Essas coisas, pesquisei na internet. Lembro-me delas para me distrair do tempo que passamos em silêncio.

Quando o Sr. Wilson identifica o projeto, um “ah” que esboça uma surpresa contida, talvez assombrada, chega de lá. Então, falo mais e revelo que quero saber um pouco da história dele. A resposta é a de que “ah, não tenho muito o que contar não, né!?”. Sorrimos. Estou mesmo é receosa de que a conversa seja difícil.
Existe ali uma cerimônia que desconheço e não sei calibrar na comunicação.

Logo, no entanto, percebo que apenas os tempos são diferentes, o ar é mais denso, o olhar é furtivo, e há o tal oceano, talvez fruto de uma introversão pessoal, talvez um coletivo que se coloca sempre a esses estrangeiros que vieram de tão longe. Ou a nós quando os encontramos e não sabemos que cerimônias respeitar!

A história? Ela vem. Só precisa ser conquistada, sai devagar, faz sua travessia. 120 dias é o tempo inicial que o Sr. Wilson tem que esperar apenas para que os blocos de composto inoculados com sementes de shitake fiquem prontos para produzir. São outras pessoas que produzem esses blocos, o substrato onde o shitake crescerá. “Não sei exatamente do que é feito. Tem serragem, farelos e umas substâncias, nutrientes, que eu não sei exatamente quais são”, ele diz.

Quem incentivou a cultivar shitake foi um amigo. Disse que era fácil. Mas não é. 120 dias tirando vagarosamente um plástico que envolve o composto inoculado com as sementes. Fico imaginando como é esse trabalho de paciência.

As sementes já estão se desenvolvendo, mas nada se vê. E o trabalho com elas acontece numa câmara fria, nesta etapa a cerca de 20º. O Sr. Wilson tem sete câmaras. As maiores, com 100m², são para esta etapa
inicial. Outras têm 75m² e servem para a fase da brotação.

O Sr. Wilson está na feira há sete anos, desde o começo. Quis vir para não ficar apenas em casa. Queria encontrar as pessoas. O pai, que tinha sido convidado pelo amigo a plantar shitake – sim, havia sido o pai – fazia as entregas para restaurantes e outros consumidores. O Sr. Wilson começou a vir para a feira.
Entro num canto, na lateral da barraca, para não atrapalhar a visão que as pessoas precisam ter dos produtos dele. Sinto-me um tanto invasora. Parece que estou adentrando uma terra estrangeira, que me é
estranha, da qual desconheço as leis. Uma intrusa? Pode ser, mas avalio que não há outra coisa a fazer ou vou atrapalhar as vendas.

O Sr. Wilson usa um pequeno espaço no balcão da barraca da D. Yola, uma sociedade improvável para mim e que não descobrirei como aconteceu. Ele está na feira porque queria deixar o sítio um pouco, deixar de ficar só nas câmaras frias. “Eu queria saber o que estava acontecendo no mundo, não é?”, ele me diz.
Acho curiosa sua estratégia de se conectar com o mundo de fora. Mas vai acontecendo, e ele estabelece lá na feira as suas relações. Discretas? Talvez, para o meu olhar.

Depois de 120 dias, as sementes começam a brotar. Para isso, precisam ir para uma câmara ainda mais fria, aquelas menores, a 16º. Depois dessa transposição, mais quinze dias e então haverá cogumelos para colher. Não nascem todos de uma vez. Feito o primeiro corte, os blocos de composto são hidratados e produzem de novo. Isso pode se repetir até sete ou oito vezes. No entanto, às vezes, uma leva inteira não produz. Trabalho e dinheiro perdidos.

“Dá pra negociar com quem vendeu, dizer que não produziu?”, pergunto.

“Às vezes dá, às vezes não dá.” Só. Não tenho detalhes sobre quando é possível ou não reclamar dos substratos estéreis ou com problemas. Olho o horizonte. Os olhares se perdem por um tempo. Silêncio. Pergunto-me como vamos seguir com essa viagem.

Tudo isso ainda é bem melhor do que com as flores, o Sr. Wilson lembra. Antes dos cogumelos, eram flores, “de corte, né?”.

“Ah!” – alívio com a continuidade da conversa – “Quem fazia? O senhor? A família?”

“É… Meu pai, né? Era do meu pai.” Descubro que quando o Sr. Wilson nasceu o pai já plantava flores.

Quando o jovem de Nagoya, o pai do Sr. Wilson, chegou ao Brasil, com todos os sonhos de um jovem imigrante de ter uma vida melhor, ele foi mesmo é para uma lavoura de batatas. Era no estado de São Paulo – “não lembro onde. Só sei que eu nasci em Barueri”. A casa que tinham prometido era, na verdade, uma barraca, uma casa de lona. Então, ele, o pai, ficou querendo sair logo daquilo, para melhorar mesmo de vida, o sonho que o movera oceano afora. Mas isso levou vários anos.

Não foi fácil. Quando enfim conseguiu deixar a lavoura, foi para as flores. E mandou vir a moça que tinha prometida em casamento no Japão. Não, espera, isso foi ainda na lavoura – o mar da conversa às vezes é misterioso e entendo mal as coisas, preciso refazer o caminho, acertar a direção. O fato é que o filho mais
velho, Wilson, nasceu quando trabalho já era com as flores. Porém, ele nunca quis aquilo para a vida dele. Tampouco os irmãos mais novos, um homem e uma mulher, quiseram.

O irmão caçula era uma capacidade para administrar os negócios, uma cabeça muito boa! Tudo caminhava muito bem quando ele administrava o negócio com as flores. Era excelente. Mas depois ele se casou com uma dentista e hoje administra as coisas do consultório. A irmã fez faculdade – “alguma coisa ligada a
computadores, não sei bem” – e foi para o Japão estudar computação. Casou lá, se separou, mas continua no Japão. Tem um bom emprego no consulado brasileiro.

“E o senhor? Também não quis as flores? Por quê? Tentou outra coisa no lugar disso?”

“As flores dão muito trabalho, é uma vida difícil. Tudo em estufa, mas às vezes dá errado e perdemos tudo. Sou engenheiro.” Engenheiro!? Estou no meio do oceano, surpresa, apertando a vista na tentativa de identificar o que está no horizonte e às vezes sou surpreendida com um movimento na água bem perto de mim.

Sr. Wilson segue navegando… A conversa flui agora. Boas correntezas.

Com o diploma fresquinho ele foi para o Japão também, quando a irmã já estava lá. Queria fazer estágio em engenharia. Os amigos desaconselharam. A irmã desaconselhou. Dificilmente ele conseguiria ganhar dinheiro, experiência e oportunidades com isso. Acabou mesmo trabalhando como operário. A irmã ajudou a procurar um bom lugar. Entre pessoas conhecidas, conseguiu não ser uma mão-de-obra explorada. Até ganhou algum dinheiro. O pai, infelizmente, precisou pedir um tanto emprestado para pagar o trator que havia comprado de um amigo – “só na palavra, não podia ficar a vida toda devendo pra ele”. Depois o Sr.
Wilson voltou pro Brasil.

Retornou pro Japão mais uma vez anos depois. E por fim veio de vez para o Brasil. O dinheiro que juntou se foi nesse movimento todo. Entre essas idas e vindas, também aconteceu o casamento. Ah, então há uma
esposa!

“E ela trabalha junto? Costuma vir para a feira?”

“Vem nada.”  Já veio. Uma única vez. Mas ele ficou pra lá e pra cá conversando – ah, que danado, um conversador! – que ela não aceitou mais vir pra ficar trabalhando sozinha na barraca. Agora que o negócio com o shitake é mais dos dois mesmo – o pai do Sr. Wilson praticamente se aposentou da empreitada –, ela está mais envolvida em tudo: faz contas, coordena compras e vendas, embala, se não me engano, colhe também.

Nesse ponto da conversa, uma moça compra shitake. Acaba levando shimeji branco e escuro também. Os shimejis não são produção do Sr. Wilson. São de amigos. As pessoas na feira procuram, então ele traz de amigos que moram perto. Um casal bonito leva mais uma bandeja, a do shitake mais graúdo, mais caro. Uma mulher com o filhinho separa cogumelos de vários tipos. Todos se vão. Reservo o meu pacote, pago, ele guarda numa sacolinha na geladeira porque ainda vou andar pela feira. Procuramos um ponto no oceano por onde continuar.

Já estamos no fim da viagem. Não é à toa que ele conta do final do processo com os shitakes: depois de todas as colheitas possíveis, as câmaras são limpas, os substratos onde os cogumelos cresceram precisam ser descartados. Viram adubo.

Como tudo é orgânico, este é um adubo mais que especial. Pergunto se usa numa horta. Não. Acaba dando para os amigos. Entendo que ele não cultiva uma horta. Tem sete câmeras frigoríficas de cultivo de shitake. Não tem uma horta. Penso que temos uma visão romântica do que é plantar. Eu poderia perguntar admirada: o senhor não tem uma horta? Não. Ele já me explicou que tem sete câmeras de shitake, que nunca quis as flores, que se formou em engenharia, que quer vir à feira para saber o que está acontecendo no mundo, pra não ficar fechado no sítio… Então, não, pelo visto não tem e não quer ter uma horta.

Que outros anseios deve ter? Por ora satisfaz, por meio da sua produção de shitake, aquilo que é o básico, sua sustentação, mas também o desejo de sair de sua terra – o sítio, as câmaras, o Japão na tradição herdada de cultivar cogumelos – e ir para essa terra estrangeira que é a feira. Ele quer olhar o mundo, este
mundo de cá. Quer encontrar pessoas diferentes, saber o que está acontecendo no mundo aqui fora. Quer saber o que acontece no mundo delas? Saber como elas vivem? Talvez. Talvez ele não saiba muito bem o que o move. Nem nós. Ele parece respeitar isso. Não quer me contar tudo, explicar tintim por tintim. Quem sabe isso não tem raízes lá no Japão, na sabedoria oriental que lida com dimensões maiores da existência?

A existência e o oceano são mesmo infinitos e misteriosos. E têm suas correntes, profundidades e propósitos, que muitas vezes desconhecemos. É a vida. Dela, uma parte de mistério fica nesta conversa. Mas acredito que um outro tanto possa ter se revelado.

Iana Ferreira
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