Ruth das empanadas

Ruth

O sol, que permanecia escondido atrás duma nuvem, surge quando chego à banca das empanadas. Ruth conversa com um cliente e eu a observo. Seus gestos são suaves, sua presença forte. Ela me vê, se aproxima e me dá um abraço aconchegante. Depois me oferece um chá verde, quentinho e perfumado. Nosso encontro, marcado e desmarcado um sem-fim de vezes, finalmente vai a acontecer.

Conversamos entre um e outro cliente, entre uma empanada indiana e uma de berinjela, “pega um pouco de molho, é muito bom, está feito com pimenta chilena”. Porque Ruth Margarita Mesías Encina é chilena, “eu fui uma adolescente terrível que se transmutou em professora de Ioga”, me diz a modo de apresentação. Olho-a, e ela sorri. Seu olhar é diáfano, mas percebo um fundinho de tristeza, “sai de Chile aos dezessete anos, casada e grávida, para escapar do machismo numa família onde as mulheres não tinham voz”.

Solícita, atende um cliente que lhe pergunta os sabores das empanadas, ela explica que são veganas, e eu aproveito para abrir meu caderno, “chegamos como mochileiros à Porto Alegre de quarenta anos atrás. Dormíamos onde podíamos. Minha filha nasceu num hotel, em Florianópolis”.

Viveram dias muito duros, “sentia-me sozinha, desamparada, desesperada. Uma mãe criança com um neném nos braços”. Os médicos da maternidade a ensinaram a cuidar do seu bebê, “com eles aprendi a dar banho, trocar fralda… tudo. E quando não sabia que fazer com a minha bebê, ia para o hospital e perguntava”.

Mas, assim como Porto Alegre, Florianópolis foi apenas uma estação, um lugar para restaurar as forças, antes de retornar à estrada. A meta era São Paulo, “instalamo-nos no bairro de Perdizes e, durante algum tempo, vivemos em cortiços e hotéis baratos”. Só tinham a eles mesmos: dois adolescentes e um bebê. “Um casal hippie que naquele ano de 1977 vivia de fazer e vender artesanato”.

Ao lado do companheiro, Ruth aprendeu a trabalhar a madeira e a construir instrumentos musicais. De suas mãos saíram flautas andinas, gembes e bongos africanos, que aos domingos vendiam na Praça da República, “num desses domingos, três senhores muito bem vestidos se aproximaram da nossa banca. Observaram-nos, contemplaram nossos instrumentos, se entreolharam e, como se tivessem chegado a um acordo, perguntaram de onde éramos. Quando souberam que éramos chilenos, como eles, nos deram dinheiro suficiente para sobreviver uma temporada”.

Mas não foram seus únicos “anjos”, me explica Ruth, antes de relembrar como o padre Mário Newton, da Pastoral do Emigrante, lhes ajudou a tramitar a documentação brasileira que lhes permitiria, além de viver e trabalhar legalmente no país, conseguir que a Prefeitura lhes deixasse vender suas mercadorias na Praça da República, “foram anos maravilhosos”, assegura Ruth.

Chegam novos clientes e Ruth coloca no forno, para esquentar, umas empanadas de shitake e outras de algas, “minha mãe fazia as empanadas num forno caipira feito com tambor. Assim que, quando em 2012 comecei a fazer as empanadas para a Feira, improvisei um forno inspirado no dela. Não podemos perder as raízes, elas são a nossa essência”.

Os clientes despedem-se e Ruth olha pra mim como quem busca o fio da meada. Um dia, vocês foram a Embu das Artes, leio no meu caderno, “sim, e descobrimos que Embu era tudo o que queríamos. Morei lá quinze anos, até que em 2002 me separei e voltei para Chile”.

Retornou ao lar familiar para se reencontrar e se reinventar. Ficou no Chile três anos. Três anos nos que se reconciliou com suas origens, fez curso de massagista, trabalhou no Fours Seasons e, “tomei consciência de mim”, assinala.

Nessa época também começou a namorar a Peter, um orquidófilo brasileiro de ascendência alemã, com quem anos mais tarde contraiu matrimônio e hoje comparte a vida e os sonhos.

Acercam-se novos clientes e sinto que chegou a hora de finalizar a nossa conversa. Ruth embrulha duas empanadas para mim, eu aproveito para observar, uma vez mais, a mulher delicadamente forte; a mulher possuidora duma intensa e rica bagagem de vida; a mulher consciente de estar justo onde deve estar; a mulher que é esposa, mãe, artesã, professora de Ioga, massagista; a mulher das empanadas: Ruth.


 

Yolanda S. Meana
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